O que está por trás do comunicado das potências nucleares com apelo de evitar conflito atômico?

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14:55 06.01.2022

Luiza Ramos
Especiais
A Sputnik Brasil conversou com o doutor em Estudos Estratégicos Claudio Esteves Ferreira e com o doutor em engenharia nuclear Ildo Sauer para compreender melhor o significado do anúncio das principais potências mundiais sobre seu compromisso em evitar ameaças nucleares.
O P5 (grupo de países-membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU composto por Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, França e China) divulgou um comunicado na última segunda-feira (3) em que reforça seu compromisso em evitar a deflagração de uma guerra nuclear.
Desde 1968, o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) tem sido a principal ferramenta do sistema internacional para inibir, normatizar e fiscalizar a produção, desenvolvimento e modernização de iniciativas nucleares, quer sejam para fins pacíficos, quer sejam para fins militares.
Atualmente contando com 191 países signatários, dentre eles o Brasil, o TNP simboliza uma força relativa cheia de contradições e assimetrias, que visa assegurar a paz no âmbito do sentimento humanitário entre as nações.
A declaração do P5 vem em um momento de grandes tensões internacionais envolvendo Rússia, Ucrânia, Estados Unidos, Taiwan e China. Situações que, em outros momentos da história recente, teriam conduzido esses países à guerra.
Para compreender o significado do anúncio, a Sputnik Brasil conversou com o doutor em Estudos Estratégicos, especializado em Política Nuclear Internacional, Claudio Esteves Ferreira, e com o doutor em engenharia nuclear e membro do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP) Ildo Sauer.

Risco nuclear

No momento em que as ligações entre Putin e Biden se tornaram frequentes, a opinião pública internacional acendeu uma luz de alerta. Em meio às acusações norte-americanas de um possível plano de invasão russo à Ucrânia (fato negado pelo Kremlin em inúmeras ocasiões) e uma ostensiva atividade da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) no leste europeu, o mundo tem revivido sensações nada nostálgicas de medo diante da possibilidade de um conflito armado, porém com uma diferença, seria um conflito de proporções nucleares.
As tensões também valem para as afirmações chinesas sobre como resolver o problema com Taiwan em uma questão de horas, em meio a testes de mísseis hipersônicos que evidenciam uma superioridade tecnológica sem precedentes em relação aos EUA.
Em um dos trechos centrais do comunicado, as nações reafirmam que “uma guerra nuclear não pode ser vencida e nunca deve ser travada”. Mas se o sentimento do TNP permanece o mesmo, o que mudou?
Para Cláudio Esteves o comunicado tem outros objetivos, porém, essencialmente não altera em nada as preocupações na ordem internacional.
Segundo Ildo Sauer, o comunicado é, na verdade, “motivo de profunda frustração, decepção e tristeza para toda a humanidade. Lamentavelmente esses países, ao invés de cumprirem o espírito do TNP e a própria Carta das Nações Unidas de caminhar em direção a paz promovendo o imediato desmantelamento de suas armas e arsenais nucleares, ao invés disto, anunciam que querem manter sua supremacia e impor aos demais países sua superioridade com base na força das armas nucleares”, afirmou.

Acordos nucleares

Ainda diante deste cenário complexo, o comunicado do P5 vem a público quando um novo acordo nuclear iraniano começa a despontar no horizonte. O programa nuclear do Irã foi lançado na década de 1950 e, muito embora seja um país signatário do TNP, foi interrompido em 1979 por ocasião da Revolução Islâmica. Desde então, paira no sistema internacional um certo ceticismo sobre sua retomada e seu uso exclusivo para fins pacíficos.
Programas nucleares para fins pacíficos compreendem, por exemplo, a instalação de usinas de enriquecimento de urânio sob supervisão técnica do país que vai fornecer a tecnologia, conforme consta no TNP. Mas, como a tecnologia nuclear é bastante atual, o mesmo processo de enriquecimento de urânio a 3%, até 5%, permite que este seja enriquecido a 90%, percentual necessário para que se possa fabricar uma arma nuclear.
Ildo chama a atenção para a injustiça prevista nesta relação entre os países detentores da tecnologia e os ditos “subordinados”. “O velho imperialismo colonial dos séculos XVII, XVIII, XIX e XX agora é substituído pela supremacia das armas nucleares, que permaneceram na retaguarda enquanto as ações econômicas podem prosseguir, e estas mesmas armas servem de permanente ameaça. Mesmo havendo notáveis diferenças no âmbito geopolítico e econômico, ainda assim, essas potencias [P5] se unem para tentar impor aos demais países a sua superioridade. Isto é inaceitável”, ressaltou.
O novo acordo nuclear iraniano ainda não tem previsão para ser reativado.

Arsenais nucleares

Se existe um ponto de acordo no comunicado do P5, é o de que guerras nucleares não têm vencedores.
“Desde os anos 50, com o desenvolvimento das armas de fusão de hidrogênio, ficou evidente que um conflito nuclear era inviável e que a lógica clausewitziana, da guerra como continuação da política por outros meios, havia chegado ao fim“, afirmou Cláudio. “Então, guerras nucleares, guerras totais ou guerras amplas, entre as grandes potências, não acredito. Não vejo sentido nisso. A arma nuclear, hoje, é vista apenas como um instrumento de dissuasão, para impedir que o outro me ataque,” complementou.
Para o especialista, apesar de significarem um risco por si só, as armas nucleares são artifícios que podem ser usados para desencorajar que inimigos de um Estado possam entrar em conflito armado, fazendo-os optar por saídas diplomáticas. Mas, quando os Estados em questão não são tão grandes quanto os integrantes do P5, fica difícil prever se não haverá, em algum momento, uma medida desesperada de sobrevivência diante de uma situação crítica.
Para Ildo, o comunicado do P5 representa um gesto delicado sobre arsenais nucleares. Ao passo que o grupo ratifica sua posição de privilégio, faz com que os demais signatários repensem o significado de sua postura.
Para o estrategista militar americano Bernard Brodie, o armamento nuclear era a “arma absoluta” para se vencer qualquer guerra. Segundo ele, em poucos anos dezenas de países teriam armas nucleares. Mas isso não aconteceu.
A maior parte dos países preferiu não ter pesquisas nucleares, com vistas à construção de um arsenal nuclear, por razões de segurança. Seguindo exatamente o contrário do pensamento de Brodie, os países entenderam que, ao desenvolver um arsenal nuclear, automaticamente os países vizinhos ou rivais se sentiriam ameaçados pela tecnologia e buscariam fazer o mesmo, seria um custo muito alto a ser assumido.

Futuro do TNP

O desenvolvimento de armas nucleares é, sem dúvida, um marco histórico da maior importância para a humanidade. Não apenas pelo seu imenso poder destrutivo, mas porque o custo de seu desenvolvimento pôs um fim a um ciclo de guerra e paz, quase interminável, entre as grandes potências do sistema internacional.
Em setembro de 1945, o general norte-americano Douglas MacArthur, a bordo do encouraçado USS Missouri, em seu discurso diante da rendição japonesa menciona que “os avanços da ciência modificaram a natureza da guerra”.
Sobre o futuro do TNP e os possíveis desdobramentos da posição do P5 em relação ao armamento nuclear, Ildo não vê outra saída “a não ser países como o Brasil, talvez em conjunto com Argentina, México, Alemanha, Japão, África do sul e, quem sabe, até a própria Austrália e Canadá, caminharem na direção de exigir que os cinco países e os demais, como Israel, possivelmente Índia, Paquistão e Coreia do Norte, caminhem decisivamente para a desnuclearização e desmantelamento de seus arsenais nucleares e retirada de materiais físseis, de contrário os demais países também teriam o direito inegável de caminhar na direção das armas. Espero que isto não seja necessário“, finalizou.
Ainda sobre o caso da China envolvendo Taiwan, para Cláudio há uma questão importante a ser lembrada.
Portanto, o próprio TNP, como parte da ordem internacional, expressa e contém as contradições e dissenções que existem neste sistema, onde países como Índia, Israel, Coreia do Norte e Paquistão, por se relacionarem de diferentes formas com o sistema internacional, consequentemente vão expressar resultados e interações diversas com essa política.
Enquanto a Índia, que sempre buscou por um status de potência nuclear, apontando o “apartheid” instituído pelo tratado entre quem pode ou não ter a tecnologia, é reconhecida pelos EUA como potencia nuclearmente responsável, os demais países, como Paquistão, dependem da tecnologia por uma questão de sobrevivência, uma espécie de equalizador de assimetrias de poder.
“Não se trata mais de uma questão de controle, essas nuances sobre a relação dos Estados com o potencial nuclear não têm como ser combatidas ou travadas, neutralizadas, por um tratado da ordem internacional. Daí podermos dizer que o TNP oferece uma relevância relativa à questão nuclear”, concluiu Cláudio.